LEGADO GERACIONAL
Acordado
cedo numa manhã como muitas e tantas outras do período letivo anual e
prontamente preparando o habitual o café da manhã para todos da família, mamãe
pede ao papai, que desde uma hora atrás revisava os canais de notícias na
internet para sair de casa bem informado sobre acontecimentos e fatos da vida
nacional e internacional, para acordar o filho que tinha ido à cama tarde
empenhado na realização de uma tarefa escolar.
– Já já eu vou chamá-lo. Por certo, você notou o interesse especial que
ele tinha com essa atividade? Tive a sensação que se não impomos o fim ele se
estenderia noite a dentro.
– Percebi! Também achei que seu interesse ontem foi além de uma simples
e cotidiana tarefa. Aliás, nenhum dos dois prestou ajuda, nem mesmo atenção.
– Nada, você está enganada. Ofereci mais de uma vez ajuda, mas ele
recusou repetindo: "Dever fácil, papai. Coisa muito fácil"
– Quer dizer que tirará nota máxima. Vai acordar ele logo, perderemos a
hora.
Mas o
pai tinha ficado preocupado desde ontem pela atitude do menino, que não era de
destinar grande prioridade às tarefas da escola, ao menos em comparação com o
futebol e as demais atividades extra-escolares. Alguma coisa no seu filho a
noite anterior foi estranha. Bem aproveitaria ao acordá-lo para sanar a dúvida.
A preocupação aumentava ao lembrar dos problemas psicológicos produzidos em um
amiguinho com os ataques de bullying sofridos na sala de aula. Não deixaria de
ocupar-se desse assunto nem permitiria que seu filho de 9 anos viesse a ser
perturbado com burlas e ataques por causa de características físicas, mesmo que
continuasse magro daquele jeito que o fazia parecer fora do comum nos padrões
brasileiros. Não aceitaria.
– Filhão! Estamos quase atrasados. Adiante jogador. Em pé que outro dia
de luta o espera. Filho...
– Oi pai. Estou acordado. Estava esperando você vir a me despertar. Bom
dia.
– Descansou? Vamos que chegaremos tarde. Quero conversar um assunto com
você.
– Eu também quero, mas precisa ser agora?
– Agora acho que não dará. Sua mãe está esperando para tomar café da
manhã e sair, caso contrário, todos chegaremos tarde. Conversaremos pelo
caminho.
– Beleza.
Nos
minutos seguintes o pai começou a decifrar todo tipo e maneiras de burlas e
discriminações que o filho poderia estar sofrendo e procurava saber o que
estava fazendo errado na relação e comunicação com ele, que ele não sentia
confortável para lhe contar. Por fim, decidiu que resolveria hoje, mesmo que
isso implicasse faltar o emprego. Justificaria depois para o Chefe suas razões.
Por enquanto, enviaria um WhatsApp. Será que ele e a mulher seriam responsáveis
(culpados) por manter o filho numa escola pública para poder levar a vida
familiar? Mas os problemas de bullying também aconteceriam nas particulares.
"Que descuido. Que descuido"
Agora
estavam os três na mesa para tomar o café da manhã. Os pais olhavam ao filho
com sentimento de culpa por alguma coisa. As últimas dez horas haviam sido
atípicas.
De
repente o filho, sem apartar os olhos das frutas postas na frente para comer, e
antes de poder ser interrompido, pergunta:
– Que país vocês deixarão para mim?
Os pais surpreendidos olham-se simultaneamente e
sem coordenação alguma perguntam em uníssono:
– Por que essa pergunta, filho?
O menino sem demonstrar surpresas levantou a vista
para a mãe e seguidamente para o pai e com linguagem interrogativa e triste
falou:
– Lembra aquele professor novo de que falamos semana passada, que passou
o filme “Cidade de Deus” e chamou o Rio de Janeiro de fracasso da civilidade?
Então, ontem na aula de Direitos Humanos ele disse que a gente deveria começar
a se preocupar com o país que os nossos pais legarão a nós. Explica para mim
papai. Explica. Devemos levar alguma proposta de ação?
– Que proposta de ação que nada! Esse professor extrapolou! Irei ao
Colégio hoje mesmo a procurar uma resposta. Chega. Escola pública não é
sinônimo de carnaval de rua. Chega!
– Que isso, pai?! A gente gosta dele demais. Ele ensina bem e faz a
gente pensar. Todos nós gostamos dele. Você irá contra todos os alunos e seus
pais.
– Como assim os pais?
– Sim. Ele ganhou muito destaque no Colégio desde a última reunião de
pais que teve. Aquelas que você nunca pode ir e mamãe vai. Pode pergunta para
ela antes de fazer nada no Colégio, ele é legal! Mas voltando... ele mentiu?
– A questão não é essa, senão a preparação de vocês para entender e
opinar com convicções próprias sobre esses temas. 9 anos é idade de aprender a
ler e jogar muita bola, não de ....
– Pai, desculpa, mas nós somos o futuro do Brasil e carregamos desde já
a responsabilidade pelo país. Devemos sim aprender a pensar e ter juízos de
valor sobre todas as coisas, especialmente, as relativas às ações do Governo, a
justiça social e a sustentabilidade do país. Gostaria de me entregar um país 10
e que eu repassasse para meus filhos, seus netos, um país 5? Responda, por
favor.
– Não. Claro que não, meu filho. Que pergunta é essa! Gostaria de fazer
mais pelo meu país e claro pelo futuro de todos vocês.
– É o que eu imaginei, pai. Vou passar para você algumas leituras
importantes.
– Ah, agora pronto. Virou professor?
– Não, papai. Quero ser cidadão. Já aprendi um monte de expressões novas
e quero pôr em prática tudo o que eu sei. Que tal se lermos um Artigo da
Constituição por dia até ela completar seu 30º aniversário?
– Me parece uma excelente ideia. Começaremos por onde?
– Ora, vamos começar pelo começo! Aquele textinho antes dos
artigos...como é o nome mesmo? O professor fala toda vez!
– Introdução?
– Não! Preâmbulo! É, Preâmbulo é o nome! Tem que ser pelo Preâmbulo!
Hoje já não dá mais tempo, temos que ir. Amanhã começamos. Não esquecerei da
sua promessa. Vou exigir. Meu professor diz que promessa “vincula”! Acho que é
um termo do Direito, algo assim. Não permitirei que atue como certos políticos.
– Kkkkkkk. Vamos embora logo.
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