Diálogo entre o Direito, a Lei e o Crime (PARTE 2)


– Com licença, senhor Crime. De antemão já enfatizo sua gentileza em fazer prevalecer os princípios democráticos dos debates e o direito à defesa por meio da apresentação do meu ponto de vista. Mesmo sem chegarmos a um acordo, concluiremos este diálogo satisfeitos porque cada um conseguiu livremente utilizar todos os seus argumentos e defender suas perspectivas teóricas, filosóficas, normativas, sociais e morais. Por fim, tanto eu como você, e em isso estamos muito de acordo, somos resultados da vitória em nível social de certas posições axiológicas e morais.

Se me permitir, quero preliminarmente lhe dizer que tenho uma opinião diferente a sua e preciso esclarecer que três coisas que você não teve em conta ao fazer seus juízos de valor em torno a mim e a meu papel sistêmico, normativo e social. É imperativo que faça-lhe saber minhas ponderações. Com o objetivo de ser claro e breve, seguindo seu respeitável estilo, farei minha apresentação de razões numa ordem lógica a partir de três perguntas centrais. Espero que dessa maneira possa me compreender (bem distinto de aceitar), e em definitivo ambos ganhemos experiências e o que é mais importante: que o auditório geral ao nos conhecer melhor possa elaborar seus próprios pontos de vistas sobre eu, você e a relação entre nós. Vejamos:

Em primeiro lugar, tratarei a questão da legitimidade, que tu questionas e me parece que deva ser ab initio ponderada. Em segundo lugar, explicarei quais razões e contextos históricos justificam meu conteúdo e por isso, o que tipifico como proibido ou permitido; legal ou ilegal é apenas consequência. Por último, é imperativo diferenciar, coisa que você não faz, e, portanto, conduze-o ao erro epistemológico, o que estabeleço nos meus textos enquanto Direito: é uma formulação normativa. Distintas são as inferências ou consequências que delas derivam autoridades e operadores na hora de decidir sobre minha aplicabilidade em situações sociais concretas.

O tema da legitimidade se explica porque sou, segundo o clássico, a expressão da vontade geral, representação normativa daquilo que o povo, pelo dito dos seus representantes, quer ser e espera ter. Isso me confere uma autoridade sob o Estado de Direito que vivemos e impõe a todos subordinação e obediência. Bastou que fossem seguidas as exigências e procedimentos pré-estabelecidos para minha pertença ser um fato e minha validade presumida. Então, eu não sou apenas uma intenção reguladora, senão uma verdade normativa que ao trazer, entre tantas outras prescrições, proibições, obrigações e permissões pretendo garantir uma convivência pacífica e harmônica num contexto democrático.

Continuando a pauta discursiva anunciada digo que hoje você aparece em mim prescrita como o dever jurídico, e por isso associado à sanção, se a imputação resulta provadamente justificada. Mas, pelo dinamismo social, moral e o próprio normativo que envolve minha existência você deve pensar na probabilidade de que talvez no futuro, pela força revogatória de outro dispositivo de minha natureza, pode acabar sendo descriminalizado. Também, mesmo que menos provável, poderia você perder sua aplicabilidade por acontecer mutação constitucional. Devo, finalmente, destacar que embora sejamos criadas para vigorar de forma indeterminada, nossas existências são condicionadas por fatores extra normativos, que em definitivo, como visto, nos definem.
Concluindo meu raciocínio aponto que não pode a mim imputar, ao menos totalmente, a maneira em que você é interpretado a partir de meu texto nem como resulta aplicado nos casos concretos. Autoridades normativas, assim como outros operadores do Direito, são os que participam na produção de consequências normativas concretas e particulares e, portanto, definem sua fisionomia social. Não seria correto carregar sobre mim tudo o que com você acontece.

– Devo, caríssima Lei, inferir de seu discurso argumentativo (a sorte está lançada) que você explica o Direito, no sentido normativo, como social.

– Sim. Parece que sim. Que tal assistir juntos o filme "O julgamento de Nuremberg", de modo a você me compreender melhor?

– Claro, não vejo porque não. Mas por que esse precisamente?

– Pretendo que veja, embora com exemplo tristemente célebre, como a Lei, eu, pode servir para veicular normativamente absurdos morais, mesmo que criada validamente, declarando como crime ações encobridoras do Mal, que devem chamar a atenção à relevância dos limites axiológicos-morais à vontade reguladora que cria meu texto e institucionaliza você.

– Quer me convencer que é possível identificar o Direito ilegal e o crime criminoso sem a necessidade de reconhecer a existência de uma “racionalidade axiológica normativa humanista”?

– Creio que você precisará tirar o véu produzido pelo conjunto normativo em que opera.

– Vejamos se o filme ajuda.

– Ajudará. Claro que ajudará... Sêneca já disse: "É parte da cura o desejo de ser curado".

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