Diálogo entre o Direito, a Lei e o Crime (PARTE 1)

– Sou uma vítima de seus comandos, mesmo que apenas pela força que você pode impor. Somente sou um resultado de sua invenção. Você quem me cria, estigmatiza, reprime e gera os marcos para minha repressão e castigo. Me conceitualiza como crime, faz questão de me tipificar, de me classificar como ação ou omissão perigosa para a sociedade, ao bom desenvolvimento das relações humanas e aos direitos das pessoas que protege, e para as quais você representa reflexo de vontade, expressa em forma de prescrições obrigatórias. 
Não sei se efetivamente sou a pior coisa que acontece, numa análise objetiva e neutra. Minha dúvida tem fundamento, isto porque dificilmente é possível identificar, por falta de clareza, a razão suficiente que faz de mim uma coisa reprovável. Imagino que ao me tipificar ora como proibido ora como obrigatório e fazer com que penas advertam que devo ser afastado do comportamento social possível, existam razões morais para tanto e não apenas as justificativas de natureza material. Eu estaria mais conformado se o fundamento de minha satanização fossem motivações axiológico-morais fundacionais, cujo conhecimento expandido suficientemente entre todos levaria a que um certo consenso axiológico-moral dos humanos rejeitasse o mal. Digo isto porque certamente para muitos a introdução aos binômios “proibido-permitido”, “legal–ilegal”, nem sempre se justifica, logicamente porque mais parece uma maneira de segregação social, econômica e classista do que uma verdadeira proteção do interesse comum. Até mesmo porque se fosse realmente do interesse comum todos teriam um sentimento favorável e justificariam minha inclusão entre o detestável socialmente.

Se quer saber, uma outra razão de minha incorformidade é que alguns dos tipos que represento são sempre imputáveis a certas classes e pessoas que formam parte de um grupo social cuja representação na hora de sua formação e produção não estavam e estão devidamente representados. Ações e omissões socialmente perigosas sempre existiram e existirão, mas qual o critério objetivo e real de sua qualificação?! Pois bem é sabido que algumas das que hoje se consideram detestáveis já foram consideradas práticas normais e comuns, logo socialmente aceitas. Realmente, deveria se pensar a maneira de, já que tais ações e omissões foram estabelecidas como puníveis, fazer um labor divulgativo/educativo para ao menos propiciar a legitimidade da sua vontade reguladora e o que resulta mais sábio, tratar de impedir que tais proibições sejam cometidas. Pode que essa não seja uma de suas tarefas prioritárias, já que teria que colocar em sua pauta a relação causa-efeito e isso, desde essa sua perspectiva estritamente normativista- legalista, não lhe interessa ou é permitido. Em sentido prático, a mesma coisa.  É uma pena, viu?

Bem que você poderia desprender-se um pouco dessas ideias do Século XVI de que tu és a expressão da soberania e de que uma vez posta por procedimentos pré-estabelecidos não é possivel discutir sua conveniência moral ou a carga de justiça que representa. Feliz foi o Século XIX, em enviar ambas ideias ao museu das velhas e ultrapassadas escolas e teorias jurídicas. E, por favor, não use como justificativa os grandes nomes, sejam de austríacos, de ingleses ou franceses. Que obstinação teorética! Será que não sabe como tiranos e todo tipo de governantes autoritários apoiaram-se dessas “geniais ideias” para afastá-la da sua razão justificadora e do sentido do sistema de que forma parte? Quem sabe tudo seria distinto se lembrasse de sua transitoriedade no tempo e singularidade territorial (rio lembrando daquele promotor alemão quando em palestra memorável diminuiu toda pretenção de transcendência) e por isso, que é menor e intranscendente em face ao mencionado sistema.

Quiçá, nessa nova perspectiva, assim conclua que também sou dotado de uma transitoriedade e territorialidade que me é própria por vir sempre colado ou produzido por seus enunciados. Se bem que eu poderia, para libertar-me de sua opressão, levantar um discurso de autonomia, mesmo que relativa em algumas de minhas formas. Ainda mais porque minhas manifestações vão contra princípios de civilidade cuja transcendentalidade fogem inclusive ao seu poder regulador. Aliás, sem dizer dos inúmeros exemplos históricos de interpretações espúreas que veiculaste e fizeste reinar para justificar minhas ações em umas ocasiões e outras considerá-las merecedoras de castigo. Ora seu voluntarismo é tão nocivo como as minhas ações.

Enfim, e para pretender concluir, eu reconheço que sou um desvio do “correto”, inclusive que às vezes tenho manifestações cruéis e perversas. Admito. E com isso, carregarei todo o ódio moral que produzo, mas, convenhamos, que seria menos mal se você fosse menos autoritária e afastada da realidade para a qual me pensa e estabelece.

Melhore sua performace reguladora sendo mais social e humana e com certeza, minha incidência será bem inferior nas vidas das pessoas. Imagino que nisso, ao menos nesse ponto, poderemos coincidir.

Bom, sempre que não pretenda reduzir o assunto a comigo justificar sua própria existência.

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