A TRIPLA DIMENSÃO DOS DIREITOS HUMANOS


A tripla dimensão dos Direitos Humanos [1][2]


Prof. Dr. Angel Rafael Mariño Castellanos


Sumário: Introdução. 1. Os fatores que incidem na existência dos Direitos Humanos. 1.1. A função do Estado. 1.2. A atuação dos indivíduos. 1.3. A participação das organizações internacionais e regionais. 2. A igualdade entre os direitos e a tripla dimensão dos Direitos Humanos. 2.1. O reconhecimento no ordenamento jurídico interno – especialmente na Constituição – dos Direitos Humanos. 2.2. A criação de uma condicionalidade material que propicie viabilidade social para os direitos e liberdades reconhecidas, para que sejam efetivadas sua realização, gozo e exercício. 2.3. A institucionalização de um firme e múltiplo sistema de garantias para assegurar a proteção e a tutela dos direitos e liberdades individuais e coletivos. Conclusões. Referências Bibliográficas.



Introdução

O tema  “Direitos Humanos” ocupa um importante lugar tanto para a Teoria e Prática Constitucional como para Ciência Política; hoje em dia ninguém discute seu significado para a asseguração efetiva da dignidade humana. Todo Estado, sem que seja relevante aqui citar o regime político, está interessado em incorporar no discurso político nacional e internacional essa temática, de modo que visa a ser reconhecido como um garantidor dos mesmos.

Por essa razão, não é coincidência que nos últimos anos a categoria político-jurídica Direitos Humanos tem recebido um tratamento preferencial a nível international e em geral, dos sistemas jurídicos nacionais. Essa prioridade se observa concretamente com o surgimento da Organização das Nações Unidas (ONU) e pela criação por meio desta de outros órgãos, organismos e organizações especializadas ou dedicadas ao tema Direitos Humanos. Também é possível observar tal prioridade com a aprovação de um conjunto de documentos internacionais como: A Declaração Universal dos Direitos Huamanos de 1948; o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos de 1966; o Pacto Internacional de Direitos Sociais, Econômicos e Culturais, também de 1966, e demais Convenções e Resoluções sobre o tema (ONU, 1998).

Assim, é fácil compreender todo o interesse mundial que hoje se percebe pela celebração do 50 Aniversário da Declaração Universal dos Direitos Humanos, sendo relevante o chamado mundial a intensificar os esforços nacionais e internacionais por dar aos Direitos Humanos uma maior efetividade social; porque em uma apreciação adequada, torna-se insuficiente falar do reconhecimento formalista dos Direitos, desemparados de uma certa condicionalidade material e eficiente sistema de garantias.

“Os problemas que me têm sido expostos nos últimos dias se deram também em outras regiões do mundo: violência assassina e violações, tensões étnicas, discriminação, desigualdade de oportunidades econômicas, reminiscências de regimes abusivos, pobreza onipresente e denegação dos direitos fundamentais das mulheres. O caráter corrente dessas trangressões nos devolve à realidade e nos faz recordar que não existem razões para a complacência ou satisfação.” (Alta Comissária das Nações Unidas para os Direitos Humanos, 1997).

Dessa forma, a realidade mundial e práticas de muitos países reforçam a importância do tratamento do tema desde um enfoque tridimensional, dado que em alguns países existem altos níveis de reconhecimento, mas insuficientes de condicionalidade material; em outros, grande preocupação pela condicionalidade material – sobretudo de certos direitos – mas são limitados nos níveis de reconhecimento. Tanto em uns como nos outros, a proteção aos direitos, por estar tão relacionada com as variáveis anteriores de reconhecimento e condicionalidade, perde efetividade. Qual o valor da institucionalização formal de importantes mecanismos protetores, se os titulares dos direitos não conseguem lograr o pleno gozo de seus direitos, ora porque não estão reconhecidos, ora porque não existem condições sociais e legislativas?

Distanciado da consideração tridimensional dos Direitos Humanos, a questão nos aparenta próxima à demagogia e à retórica. Os discursos políticos e as leis não acabam com a repressão política e ideológica, nem com as enfermidades, o analfabetismo, a fome e a pobreza. Assim como não resolvem o desemprego, a discriminação e a desigualdade; males que impedem a existência de uma verdadeira cultura nacional de Direitos Humanos e portanto, o gozo pleno e igualitário para todos os seres humanos de seus direitos e dignidade.

Na Conferência Mundial de Direitos Humanos, celebrada em Viena no ano de 1993, em sua Declaração e Programa de Ação se recomendava que “cada Estado considerasse a possibilidade de elaborar um plano de ação nacional em que se determinem as medidas necessárias para que o Estado melhore a promoção e proteção dos Direitos Humanos.” (Anistia Internacional, Secção Espanhol, 1998).
Hoje, felizmente, se percebe uma vontade comum de ampliar o conjunto de direitos que se reconhecem às pessoas, e de criar melhores condições sociais e materiais para a realização plena dos direitos, ao passo que se generalizam e internacionalizam mecanismos e instituições protetoras.

O presente ensaio foi realizado no marco da categoria “Cultura Nacional dos Direitos Humanos” porque sua utilização nos possibilitou a introdução da perspectiva tridimensional para que se impeça o fatal reducionismo do assunto ao simples reconhecimento ou condicionalidade ou mecanismos de proteção. Proponho como panacéia adotar o enfoque integral e sistêmico no momento de estudar esse importante tema.

1. Os fatores que incidem na existência dos Direitos Humanos

É preciso reconhecer que os Direitos Humanos necessitam para existir da ação sistemática de determinados fatores. Cada um desses fatores tem uma função concreta ante o problema dos Direitos Humanos e os três (reconhecimento , condicionalidade material e garantia) em conjunto são seus mecanismos condicionadores.

Atualmente é difícil tratar do assunto dos Direitos Humanos sem vinculá-lo à atuação do Estado, dos Indivíduos-Titulares e dos Organismos Internacionais e Regionais, dos quais aqueles dependem. Nem muito menos é possível abordar o tema seriamente sem analisar previamente a função desempenhado por cada um deles.

Neste ensaio, antes de nos refirirmos à tripla dimensão interna dos Direitos Humanos, trataremos a tripla atuação sobre os referidos direitos por parte dos fatores mencionados. Há também nessa análise um enfoque tridimensional.


1.1 A função do Estado, a qual corresponde assegurar (i) um nível de reconhecimento formal aos direitos individuais e coletivos, incluindo aqui um conjunto de atividades estatais de divulgação e educação a nível social em torno do tema; (ii) um nível de condicionalidade material para a realização social e o gozo efetivo de cada um dos direitos individuais e coletivos reconhecidos; (iii) um sistema garantias e proteção de qualidade para os ditos direitos ante a ameaças, limitações, desconhecimentos e violações.


Estabelecer a nível social um clima de cultura, respeito, realização e proteção aos direitos humanos é uma das funções internas mais importantes de todos os Estados democráticos (MARIÑO-CASTELLANOS, 1994 – 65-71).

Tal atividade supõe uma série de tarefas encaminhadas a propiciar que na sociedade todos os indivíduos tenham a possibilidade de desenvolver todas suas potencialidades humanas e sociais, o que significa realizar-se plenamente como ser humano e ser social, e portanto, obter a verdadeira dignidade.

Essa função interna é denominador comum a todos os Estados, dado que sua finalidade é inerente à toda sociedade moderna e civilizada onde se tenha sido estabelecido como valores superiores da ordem política, jurídica e social a democracia, a liberdade política e a dignidade humana.

 Para compreender melhor a função estatal de criar uma cultura nacional dos Direitos Humanos e a relação Estado-Poder com os cidadãos enquanto titulares dos direitos, é preciso situar ao centro os fins do Estado. A compreensão dos fins do Estado está , por sua vez, intimamente relacionada com a conceitualização ideológica da relação Estado-Indivíduos e da correlação entre o social e o privado.

Desde o Tomismo como cultura jurídica (século XIII); das argumentações de Occam, Locke, Hobbes, Rousseau, Montesquieu; do jusnaturalismo como corrente filosófica; da Magna Carta de 1215; do Bill of Rights de 1689; da Declaração Americana de Independência, em especial, a dos Representantes do Bom Povo de Virginia de 1776; da Declaração do Homem e do Cidadão de 1789; das Dez Primeiras Emendas à Constituição Federal dos Estados Unidos de 1791, entre outros sucessos políticos e jurídicos, começou-se a ser reconhecida uma primazia (mas bem dizer seria autonomia) do indivíduo frente aos poderes do Estado, defendendo-se que cada cidadão (não indivíduo e nem súdito) possuia como atributo inerente e inato à sua condição humana um conjunto de liberdades e direitos que asseguravam sua vida – plena – em sociedade e que funcionavam como limites aos Poderes Públicos, e como valor filosófico e ético que determinava a legitimidade democrática de um Governo e uma sociedade.

No entanto, o desenvolvimento da humanidade e o incontrolável passo da história implicaram que a apreciação dos Direitos Humanos evoluísse; então, não foi mais suficiente garantir uma declaração legislativa ou constitucional dos direitos e um Estado abstencionista, inibido ante os direitos e liberdades dos indivíduos. Surgiu-se a necessidade de um Estado comprometido e responsável socialmente com os direitos dos cidadãos e com o enfrentamento e soluções dos problemas que impediam a realização plena dos referidos direitos. Assim, deveria se trabalhar para o fomento de um clima social de igualdade, prosperidade e desenvolvimento, o qual exigia a realização de um conjunto de prestações sociais que funcionariam como a condicionalidade material à realização dos direitos reconhecidos, ao passo que concomitantemente fosse ampliando e aperfeiçoando as instituições que protegeriam os titulares dos direitos a qualquer tipo de perturbação.

Todas essas eram as novas demandas que os Direitos Humanos iam impondo ao Estado; e este devia assumir responsavelmente a questão.

A relação Estado-Indivíduo tem sido tratada muito bem por Norberto Bobbio, que resulta-se fonte inevitável para a compreensão correta do assunto: “Por longa tradição o Estado é definido como o portador da summa potestas; e a análise do Estado se resolve quase totalmente no estudo dos diversos poderes que competem ao soberano”. (Bobbio, 1977 – 77). Ao referir-se ao modo subjetivista de interpretação do poder, a partir de Locke, há assumido que “[…] Este modo de entender o poder é o adotado pelos juristas para definir o direito subjetivo: que um sujeito tenha um direito subjetivo significa que o ordenamento jurídico [como resultado do “poder de fazer as leis” e portanto, “de influir sobre a conduta de seus súditos] lhe atribui o poder de obter certos efeitos”. (Bobbio, 1977 – 77-78) [o grifo é nosso].

A relação estabelecida entre Estado e indivíduos é mediada pelo Poder Político, que com a utilização do ordenamento jurídico, fixa os deveres e direitos das partes. Aqui, enquanto ao indivíduo se fixam ademais da obrigação de obedecer ao Direito Positivo e subordinar-se ao Estado, os direitos públicos subjetivos que os corresponde, ao Estado cabe a faculdade de exercício da soberania e do poder (com tudo o que dele ali se desprende) e a obrigatoriedade de lograr o bem comum.

As posições em torno do assunto do bem comum são díspares. A posição doutrinária e ideológica tem como resultado a explicação das ações que correspondem a como devem ser regulados os direitos dos homens e o espaço concreto reconhecido à liberdade, justiça e igualdade. O tratamento vai, então, do ético ao ideológico, onde a regulação jurídica é somente um resultado. O status real que se deriva dessa regulação jurídica permite qualificar um Estado como democrático, totalitário, ditatorial, etc., porque tal status é a solução jurídico-constitucional dada à equação Estado-Indivíduo.

Salvetti Neto descreve a relação Estado-Indivíduos e trata como derivação da mesma os direitos públicos subjetivos que funcionam como limites à atuação do Estado e dos Poderes Públicos (SALVETTI NETO, 1982 – 164). De igual modo, quando reconhece que tais direitos públicos subjetivos são limitações sociais ao Estado, vincula a existência de tais direitos aos fins sociais do mesmo, e em consequência, à obrigatoriedade que lhe corresponde de trabalhar para o bem comum dos indivíduos (SALVETTI NETO, 1982 – 165).

Dalmo de Abreu, em seu “Elementos de Teoria Geral do Estado”, faz uma explanação doutrinária da equação Estado-Indivíduo, em busca da solução da mesma e a partir daí do tema dos fins do Estado. Prefere creditar maior validez à doutrina dos “fins relativos”, pois a questão, para ele, não é que os cidadãos fiquem sob o Estado em um liberalismo irracional onde mal se reconhecem limites e onde possivelmente a ordem social esteja sob constante ameaça. Tampouco pode ser que o Estado, sob a justificativa da ordem, segurança e bem-estar comum, acabe com as individualidades, autonomia pessoal e liberdades dos indivíduos (DALMO DE ABREU, 1995 – 80 y ss.). E não se trata de criar uma solução eclética entre o liberalismo e o totalitarismo, senão de introduzir uma nova solução à equação Estado-Indivíduo. Em tal sentido, afirma: “[…] na verdade, trata-se de uma nova posição, que leva em conta a necessidade de uma atitude nova dos indivíduos no seu relacionamento recíproco, bem como nas relações entre o Estado e os indivíduos. A base dessa terceira orientação, que conta, entre outros, com a adesão de Jellinek, Clovis Bevilaqua e Gropalli, é a ideia de solidariedade [...]” (Dalmo de Abreu, 1995 – 90).

A tese da solidariedade possibilita argumentar que os fins do Estado tem como base o compromisso com os Direitos do Homem, “[…] não basta assegurar a todos a igualdade jurídica, no sentido da igualdade perante a lei, ou do gozo idêntico dos direitos civis e políticos, bem como da igual participação nos ônus públicos. É indispensável, alem disso tudo, garantir a igualdade de todos os indivíduos nas condições iniciais da vida social” (Dalmo de Abreu, 1995 – 91).

O fim do Estado é o bem comum, entendido com a criação de um conjunto de todas as condições de vida social (aqui incluso as materiais, jurídicas e institucionais) que propiciem o desenvolvimento integral da personalidade humana, de forma igual a todos, o qual implica que os fins do Estado não se esgotam com o reconhecimento legalista-formalista das declarações e normas constitucionais (ainda que seja condição indispensável para o resto). “Em conclusão, pode-se afirmar que a proclamação do Direitos do Homem, com a amplitude que teve, objetivando a certeza e a segurança dos direitos, sem deixar de exigir que todos os homens tenham possibilidade de aquisição e gozo dos direitos fundamentais, representou um progresso” (Dalmo de Abreu, 1995 – 180).

Por sua parte, Sahid Maluf considera que a finalidade do Estado é promever os ideais de paz, segurança e prosperidade, e, ao considerar negativo os extremos (liberal e totalitário) se filia a uma solução intermediária da equação a partir da qual reafirma que o fim do Estado é a busca da “prosperidade pública”, entendendo a mesma (seguindo Victor Catherin) como “ […] o complexo das condições requeridas para que todos os homens, individualmente ou em grupos sociais, possam, na medida do possível, atingir livremente e pela própria atividade a sua felicidade terrena. Em suma, o Estado não é o fim do homem; sua missão é ajudar o homem a conseguir o seu fim. É meio, visa à ordem externa para a prosperidade comum dos homens”. (Sahid Maluf, 1995 – 309-311).

Também Azabuja considera que o fim do Estado é o bem comum: “[…] a competência varia, aumenta ou diminui o âmbito de sua atividade, de acordo com as condições peculiares a cada época e a cada sociedade. Mas o seu fim é sempre o mesmo: o bem público” (Darcy Azambuja, 1989 – 115), definindo que “o bem público pode, como vimos, ser resumido em dois bens sociais fundamentais, a segurança e o progresso dos indivíduos, devendo para isso o Estado protegê-los e auxiliá-los” (Darcy Azambuja, 1989 – 119).

Kelsen, que nega a competência da Teoria Geral do Estado para abordar o problema dos fins do Estado sob o argumento de que isso é uma questão política (KELSEN, 1934 – 52), ao se referir à relação do Estado com os indivíduos faz seus pronunciamentos sobre o tema. Sua negativa lógica parte do fato de que o Estado é um “fim em si” e que o tema somente tem servido para utilidades políticas impróprias à Teoria Geral do Estado (KELSEN, 1934 – 52). Entretanto, reconhece que o Estado tem seu fim: “é verdade que o Estado, como aparato de coação, não pode justificar-se se não é suposta a validez de algum fim social, cujo serviço se põe a dito aparelho [...]” (KELSEN, 1934 – 52).

Enfim, para Kelsen, o Estado é um meio para assegurar um fim social determinado, o bem comum: “Precisamente assim que se revela que o Estado não é mais que um meio para a realização de todos os possíveis fins sociais (fim jurídico, fim cultural, fim de poder, fim de liberdade), ou, com outras palavras, que o Direito não é mais do que a forma de todos os possíveis conteúdos” (Kelsen, 1934 – 53) (é conhecida a identificação do Estado com o Direito na teoria de Kelsen).

O grau de cumprimento da responsabilidade antes descrita do Estado com fomentar o bem comum e a derivada possibilidade dos homens realizarem e disfrutarem de seus direitos, determina os níveis de legitimidade democrática do mesmo. A legitimidade de um regime estatal está relacionada com a promoção e fomento a nível social dos Direitos Humanos.

“A legitimidade abrange por último duas categorias de problemas distintos. O primeiro problema se relaciona com a necessidade e a finalidade mesma do poder político que se exerce na sociedade através principalmente de uma obediência consentida e espontânea, e não apenas em virtude da compulsão efeitva ou potencial de que dispõe o Estado, instrumento máximo de institucionalização de todo poder político” (Paulo Bonavides, 1998 – 120).

A legitimidade de um Estado está em uma consideração que outorgue os direitos do homem enquanto pilares da democracia; a violação daquele de suas obrigações para com os cidadãos libera a esses do dever de obediência e justifica a resistência. Acreditamos, com Celso Lafer, que para compreender “[…] do tema da resistência, o fulcro da questão reside na ideia de uma reciprocidade de direitos e deveres na interação entre governantes e governados: se o legislador pode reivindicar o direito a ser obedecido, o cidadão pode igualmente reivindicar o direito a ser governado sabiamente e por leis justas”. (Celso Lafer, 1988 – 188).

A legitimidade exige democracia, justiça, liberdade e igualdade social, cuja exposição concentrada são os direitos do homem: os Direitos Humanos; daí à dignidade humana, que é valor supremo de toda sociedade civilizada e democrática.

 “Liberdade e igualdade são os valores que servem de fundamento à democracia[...]. A maior ou menor democraticidade de um regime se mede precisamente pela maior ou menor liberdade de que disfrutam os cidadãos e pela maior ou menor igualdade que existe entre eles”. (Bobbio, 1996 – 8).

Não é relevante nesta defesa de valor-fonte de toda ordem política e social aos Direiros Humanos se se trata de um Estado capitalista ou socialista; ambos têm igual compromisso e obrigatoriedade legitimadora para com os direitos do homem. É relevante que os Direitos Humanos não são patrimônio de um tipo determinado de sociedade, nem foram inventados por nenhum Estado em particular; simplesmente constituem patrimônio da humanidade, fruto histórico de longas e sofridas lutas contra regimes exploradores, despóticos, colonizadores e tirânicos; e em cada etapa da história universal se tem incorporado novos elementos, até hoje conformar-se como um todo.

Com Bobbio a tese do caráter histórico dos Direiros Humanos se desenvolve, em igual sentido na obra de Gregório Peces-Barba: “[…] No plano histórico, sustento que a afirmação dos direitos do homem deriva de uma radical inversão de perspectiva, característica da formação do Estado moderno, na representação da relação política, ou seja, na relação Estado-cidadão ou soberano-súditos, relação que é encarada, cada vez mais, do ponto de vista dos direitos do soberano, em correspondência com a visão individualista da sociedade”. (Norberto Bobbio, 1992 – 4).

A função do Estado ante ao reconhecimento, à condicionalidade material e à proteção dos Direitos Humanos, tratadas até aqui, é coincidente, ainda que sob outras denominações, com a proposta de Alexandre Kiss, que aparece no prefácio da obra de A. A. Cançado Trindade: “[…] no domínio da proteção dos direitos e liberdades fundamentais da pessoa humana há três funções essenciais: é necessário defender os direitos humanos, é necessário ensiná-los e é necessário promovê-los”. (A. A. Cançado Trindade, 1991 – XXXVII).

Em qualquer sistema político há de procurar-se todo o necessário para que o homem (como pessoa e ser social) desenvolva todas suas capacidades e potencialidades e realize seus sonhos e aspirações em meio a um ambiente social não repreesivo e nem hostil; restando unicamente como limites de seu livre desenvolvimento os direitos dos outros homens, os interesses coletivos, a ordem pública e a seguridade coletiva. Assegurar tal ideal é função estatal e condição inerente à democracia.

O Estado que não assumir tal responsabilidade de modo integral, com seriedade e dedicação estará distante dos ideais democráticos e humanistas, e em definitivo, desconhecerá, desapreciará e violará os Direiros Humanos e, assim, chegará ao fim de sua legitimidade.

A democracia como forma de Estado (mais do que como forma de governo ou regime estatal) implica não unicamente o reconhecimento constitucional de um conjunto de liberdades, direitos e institucionalização de mecanismos garantistas, senão uma ativa e eficiente participação do Estado nos problemas econômicos da sociedade e da distruibuição das riquezas nacionais, de modo que sejam menores (já que não parece possível sua extinção) as desigualdades; e isso supõe uma adequada coexistência da propriedade pública com a privada, corporativa e grupal, além de uma adequada gestão dos recursos estatais, aliada de uma burocracia eficiente, moderna e ágil.

A democracia e os Direitos Humanos não podem apreciar-se à margem do desenvolvimento econômico e dos níveis sociais de pobreza, fome, analfabetismo e salubridade, pois se afastados desses fatores, somente existirão para aqueles com todas as possibilidades materiais para realizar seus Direitos Humanos, enquanto que outros seres humanos se veriam impossibilitados de disfrutar plenamente seus direitos.

1.2. A atuação dos indivíduos, que compreende o nível de conhecimento, compreensão e utilização dos direitos e liberdades que a eles foi reconhecido e do sistema de garantias aos mesmos (Cultura individual dos Direitos Humanos), e o grau de satisfação desses com a recepção, tramitação e solução estatal às denúncias aos atentados contra seus direitos e interesses legítimos.

Os indivíduos também devem ter uma preocupação com seus Direitos Humanos, do mesmo modo que tem com suas propriedades materiais e espirituais. Enquanto os Direitos Humanos são inerentes a cada indivíduo, são patrimônio dos mesmos. Os indivíduos devem acionar frente ao Estado e órgãos mecanismos e vias instituidas estatalmente, com a missão de proteger os direitos; tal ação deve se executar tanto de modo individual ou por meio de organizações sociais e não-governamentais. Mas, quando resultar insuficiente a utilização dos meios nacionais para reivindicar os direitos, seus titulares podem e devem recorrer aos organismos regionais e internacionais em busca de proteção, quando menos moral. Nisso, o reconhecimento da capacidade processual internacional dos indivíduos tem papel importante. “[…] No novo sistema de proteção, em que se reconheceu acesso direto dos indivíduos a órgãos internacionais, tornou-se patente o reconhecimento de que os direitos humanos protegidos são inerentes à pessoa humana e não derivam do Estado”. (A. A. Cançado Trindade, 1991 – 7).


1.3. A participação das organizações internacionais e regionais na supervisão e controle do tratamento de cada Estado aos Direiros Humanos. Tal fator se tem convertido em uma necessidade ante a real situação de muitos Estados, que apesar de assinarem Declarações, Pactos e Convenções, não adotam uma atitude correspondente ao compromisso internacional firmado; outros não assumem tal responsabilidade ao não converte-se em signatários, e alguns não implementam os mecanismos jurídicos internos para que as decisões dos órgãos internacionais ou regionais protetores dos Direitos Humanos vinculem e surtem efeitos internos. (Flávia Piovesan, 1996).


A atuação dos organismos internacionais e regionais no controle e supervisão dos Estados em matéria de Direitos Humanas não deve ser considerada mais como uma intromissão em assuntos internos; tal postura quase sempre oculta e justifica as violações aos direitos. O fato de pertencer à Organização das Nações Unidas implica reconhecer a competência à Comunidade Internacional para tal função e deriva um dever jurídico – internacional – do Estado de cumprir com parâmetros que demandam consenso mundial e luta na comunidade mundial em busca de paradigmas universais da existência humana.

Por outro lado, a assinatura e ratificação da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 gerou para os Estados (atualmente quase todos) uma obrigação moral com seu conteúdo e cumprimento, indício internacional de legitimidade.  “[…] Nos dias de hoje, não há como sustentar que a proteção dos direitos humanos recairia sob o chamado ‘domínio reservado do Estado’, como pretendiam certos círculos há cerca de três ou quatro décadas atrás”. (A. A. Cançado Trindade, 1991 – 4).

“[...] Como em outros campos do direito internacional, no domínio da proteção internacional dos direitos humanos os Estados contraem obrigações internacionais no livre e pleno exercício de sua soberania, e uma vez que o tenham feito não podem invocar dificuldades de ordem interna ou constitucional de modo a tentar justificar o não cumprimento destas obrigações [...]” (A. A. Cançado Trindade, 1991 – 47).

2. A igualdade entre os direitos e a tripla dimensão dos Direitos Humanos.

Nos parece que resulta muito importante nesses tempos abordar o tema da igualdade de todos os seres humanos para disfrutarem de seus direitos. Mais que o tema dos fundamentos dos Direitos Humanos, sobre o qual já se tem dito quase tudo em extendidas e proveitosas discussões e tratados de teóricos do direito, filósofos do direito, cientistas políticos e sociólogos, hoje “[…] pode-se dizer que o problema do fundamento dos direitos humanos teve sua solução atual na Declaração Universal dos Direitos do Homem aprovada pela Assembleia Geral das Nações Unidas, em 10 de dezembro de 1948” (Bobbio, 1992 – 26).

O tema da igualdade entre os direiros resulta mais importante pelas hierarquizações e diferenciações, casos que sempre por questões políticas e ideológicas tem existido na experiência concreta dos países; uns hierarquizaram os direitos civis e políticos em detrimento dos sociais, econômicos e culturais; outros os sociais, econômicos e culturais em detrimento dos civis e políticos.

A mesma confrontação ideológica, própria da Guerra Fria, em que se realizaram os debates e a aprovação da Declaração Universal dos Direitos Humanos em 1948 (A. Cassesse, 1991 – 24 y ss.), se reflete no corpo da Declaração, onde existe uma diferença numérica entre os direitos: do artigo 1 ao 21 se refere aos direitos civis e políticos, enquanto os direiros sociais, econômicos e culturais, do artigo 22 ao 29, o qual não quer dizer e nem pode ser interpretado como uma diferenciação hierárquica entre os direitos reconhecidos, dado que a própria Declaração nega tal hermenêutica.

A igualdade entre os Direitos Humanos se deriva da igualdade que existe entre todos os titulares dos citados direitos: “[...] que a liberdade, a justiça e a paz no mundo tem por base o reconhecimento da dignidade intrínseca e dos direitos iguais e inalienáveis de todos os membros da família humana”. (Considerando o Primeiro Artigo da Declaração Universal dos Direitos Humanos).

Igualdade que se ratifica no Artigo 1: “Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos [...]”, enquanto o Artigo 2 é concludente e não deixa espaço a dúvidas: “Toda pessoa tem todos os direitos e liberdades proclamados em está Declaração, sem distinção de raça, cor, sexo, idioma, religião, opinião política ou de qualquer outra índole, origem nacional ou social, posição econômica, nascimento ou qualquer outra condição [...]” (Declaração Universal dos Direitos Humanos).

Outra coisa é distinguir as categorias de pessoas ou titularidade sobre os direitos. As normas jurídicas também tem uma validez pessoal, pois podem estar dirigidas a determinados tipos de pessoas. Por exemplo, as mulheres, crianças e trabalhadores possuem peculiaridades e situações sociais diferentes, que exigem regulação e proteção específicas. Tal consideração diferenciadora não é danosa, dado que não incide na essência e existência dos direitos nem em sua igual consideração e gozo. Poderia se admitir que a classificação entre os direitos facilita uma função didática, no sentido que as esferas da vida social a que se referem são diferentes e portanto, os titulares se encontram em situações diversas a partir da realidade social concreta: o eleitor, o doente, o trabalhador, etc.

O inadmissível começa a partir do momento em que se conceptualizam como direitos negativos e positivos para marcar a diferença que nos primeiros o Estado deve se abster para que permita aos titulares a realização e gozo desse tipo de direitos; enquanto os segundos (que Robert Alexy chama de Direitos de Prestações) exigem do Estado um conjunto de ações e prestações sociais, todas requerindo finanças e recursos para assim poder garantir a realização e gozo desses direiros sociais, econômicos e culturais. Por isso, os negativos são alcunhados por aplicação imediata e os positivos por aplicação mediata. Entretanto, para propiciar o exercício do direito ao sufrágio, por exemplo, são necessárias ações positivas do Estado e de recursos – muitos – financeiro que vão desde a sustentação da Administração Eleitoral e a propaganda nos meios públicos, até o financiamento de campanhas eleitorais dos Partidos (tendência cada vez maior), o que é um direito do grupo dos civis e políticos. A responsabilidade do Estado com a implementação de todos os direiros é igual, sem distinguir quais são tratados; a condicionalidade material para todos impediria uma absurda hierarquização entre os direitos. O assunto não parece residir exclusivamente na quantidade de recursos necessários, senão no lugar e importância que a cada um deles se confere no paradigma social.

A diferenciação hierárquica ou desigual entre os Direitos Humanos está sendo muito questionada. A própria ONU e seus órgãos tem refutado as teses da desigualdade e tem declarado “[…] a indivisibilidade e a interdependência de todos os direitos humanos, à luz da unidade fundamental de concepção dos direitos humanos” (A. A. Cançado Trindade, 1991 – 40). O fundamento é compreensível: a igualdade reconhecida dos documentos, tratados e resoluções da ONU entre os seres humanos.

 “[…] Sem os direitos econômicos, sociais e culturais, os direitos civis e políticos teriam pouco sentido para a maioria das pessoas e determinados direitos de caráter econômico e social revelavam afinidades com as liberdades civis e, exigíveis per se, adaptavam-se aos mesmos mecanismos de proteção dos direitos civis e políticos (a exemplo, e. g., do direito de associação e liberdade sindical e do direito à educação” (A. A. Cançado Trindade, 1991 – 40).

Sob essa ótica que temos assumido, cada Estado há de estabelecer como política geral o respeito, a realização e a proteção de todos os Direitos Humanos a todos os seres humanos; para o qual deve focar-se o assunto desde uma tripla dimensão.

Para nós o tema dos Direitos Humanos deve ser tratado desde uma tripla dimensão porque assim se impede de simplificar o assunto ao simples reconhecimento, geralmente formal dos mesmos, para abordá-lo no marco de sua realização social, de níveis de respeito, condicionalidade material e proteção que permitem sua viabilidade na sociedade e gozo igual para todos; o qual determina realmente a postura do Estado ante o compromisso de fomentar a nível social uma cultura nacional de Direitos Humanos.

Esse enfoque tridimensional é abordado sob a categoria “Cultura Nacional dos Direitos Humanos” não para refletir sobre os níveis de respeito realmente existentes em cada país, mas para realizar uma investigação sociológica, sendo este ensaio teórico feito com o objetivo de propor uma análise com integralidade e enfoque sistemático do tema dos direitos do homem, sempre partindo da função que deve realizar o Estado.

A categoria “Cultura Nacional dos Direitos Humanos” é um conceito integrador de três categorias, até agora tratadas unilateralmente, cujo valor é para nós igual e sua interdependência é a condição de existência dos citados direitos. Agora trataremos com maior amplitude cada uma delas.


2.1. O reconhecimento no ordenamento jurídico interno – especialmente na Constituição – dos Direitos Humanos, o que implica que se reconheçam todos os direitos e liberdades individuais e coletivos tal e qual está redigido e compreendido hoje universalmente. Para isso, há de servir de guia todos os documentos internacionais e regionais.


O reconhecimento igualitário de todos os direitos é uma obrigação jurídica e moral dos Estados, além de constituir frente de legitimação nacional e internacional de um regime.

O reconhecimento dos direitos deve partir da incorporação dos mesmos à Constituição do Estado ou a normas e disposições com tal valor, para dotá-los com a força jurídica e respaldo coativo devido. Assim, dificilmente serão considerados ideais ou sonhos paradigmáticos. A força normativa superior das normas constitucionais e seu reconhecido caráter de norma diretamente aplicável e invocável favorecem assim a força normativa e a validez jurídica dos Direitos Humanos.

Em matéria de reconhecimento nacional dos Direitos Humanos, existem debates em torno da obrigação ou não do Estado de reconhecê-los totalmente e que razões imputariam certos direitos a serem não reconhecidos. Claro que um Estado, com a pretensão – dissimulada – de desvalorizar determinados direitos para não assumir certos compromissos ou de limitar o gozo aos titulares de “direitos perigosos”, invocam o atributo da soberania nacional para tratar de justificar o descumprimento do reconhecimento pleno e igual de todos os direitos, e em definitivo, para mascarar as permanentes violações aos Direitos Humanos – em um claro desconhecimento – que ele supõe. Nos parece proveitoso aqui entrar a fundo na relação entre um ideial moral não positivado em uma ordem jurídica interna concreta e a obrigação jurídica exigível a um Estado por essa omissão.

Desde um ponto de vista estritamente normativista, a não incorporação ao ordenamento jurídico interno de determinados Direitos Humanos não gera obrigações jurídicas para o Estado como sujeito, visto que a relação jurídica portadora dos direitos públicos subjetivos e das obrigações estatais é inexistente; “[…] Não há direito sem obrigação; e não há nem direito nem obrigação sem uma norma de conducta” (Bobbio, 1992 – 8) (Nino, 1991 – 63 y ss.)

A inexistência de normas no ordenamento jurídico – sobretudo constitucionais – que reconheçam direitos, em princípio impede juridicamente que se demande ao Estado para que respeite, cumpra e realiza as ações necessárias ou se abstenha de intervir. A resposta dos órgãos e instituições judiciais seria a mesma: não há violação nem lesão alguma sobre algo inexistente na legislação interna. Em tal situação, os direitos não reconhecidos se conceitualizariam como “[…] aspirações ideais, às quais o nome de ‘direitos’ serve unicamente para atribuir um título de nobreza” (Bobbio, 1992 – 9). Não obstante, se deve usar na linguagem e no discurso político e jurídico a alcunha Direitos Humanos também para os não reconhecidos, porque é uma maneira de insistir neles. “Tem indubitavelmente uma grande função prática, que é emprestar uma força particular às reivindicações dos movimentos que demandam para si e para os outros a satisfação de novas carências materiais e morais [...]” (Bobbio, 1992 – 10). Permanece o alerta porque essas reivindicações em favor dos direitos não reconhecidos acabam sendo enganadoras, pois pode “[…] se obscurecer ou ocultar a diferença entre o direito reivindicado e o direito reconhecido e protegido […]” (Bobbio, 1992 – 10).

Entretanto, existem três questões de natureza jurídica e política que aumentam a força das afirmações normativistas-justificativas. A primeira, é que existe uma obrigação jurídica ao Estado inerente e por meio da qual ele pode ser demandado (até mesmo em órgãos supranacionais) por ser signatário da Carta das Nações Unidas, onde se fixa como conduta aos Estados trabalharem em favor dos Direitos Humanos. A obrigação ficará descumprida se alguns direitos forem desconhecidos por sua exclusão do ordenamento jurídico nacional concreto.

A segunda questão é que os Direitos Humanis são as variáveis legitimadoras por excelência dos Estados, de maneira que a falta de reconhecimento de alguns deles representa desconhecimento e uma – dissimulada – violação aos mesmos; isso desvaloriza a legitimidade do Estado e do regime político, diminui a força política desse Direito “incompleto” e “imperfeito”, e portanto, se gera desde o ponto de vista político uma justificativa de resistência e gestão de mudanças, que na esfera jurídica implicaria “complementar” ou “aperfeiçoar” o Direito, e na esfera política substituição do regime.

Em terceiro lugar, a falta de obrigatoriedade jurídica dos direitos inexistentes é mais uma questão de conteúdo filosófico, mas a realidade política de arbitrariedades, inação e imobilidade jurídica que essa ausência supõe e justifica provaca as mais volumosos críticas das organizações não-governamentais nacionais e internacionais.

2.2. A criação de uma condicionalidade material que propicie viabilidade social para os direitos e liberdades reconhecidas, para que sejam efetivadas sua realização, gozo e exercício.
A condicionalidade material tem sido, das três dimensões dos Direitos Humanos, a que mais tardou em institucionalizar-se e até hoje segue sendo um problema para grande parte dos Estados em matéria dos direitos do homem, sobretudo para os países do chamado “Terceiro Mundo”. Apesar dos avanços com as Declarações, Convenções e Resoluções das Nações Unidas, seus Órgãos e Organizações (A. A. Cançado Trindade, 1991), não tem sido possível que os Estados possam assegurar às maiorias as condições materiais e sociais que assegurem a viabilidade social e o pleno gozo por igual de todos os direitos por todas as pessoas.

A condicionalidade material dos direiros está muito relacionada com o desenvolvimento econômico, com as funções sociais do Estado e com a maneira em que se distribuem as riquezas nacionais.

A condicionalidade material dos direitos diz respeito as possibilidades e disponibilidades econômicas e financeiras do Estado obrigatoriamente, mas tal argumento tem sido utilizado para justificar a não preocupação estatal na melhoria das condições de vida de milhões de pessoas e dos Direitos Humanos de todos. O argumento da falta de disponibilidade econômica e financeira misturada com os problemas de subdesenvolvimento e gastos do aparato estatal podem explicar a questão, mas não a resolve. Enquanto isso, seguem existindo e aumentando a quantidade de seres humanos impossibilitados de exercerem seus direitos fundamentais.

A condicionalidade material teve quatro momentos importantes:
1- Sua quase inexistência sob o liberalismo dos Séculos XVIII e XIX;
2- Sua manifestação generalizada nos Estados socialistas, ainda que geralmente sobre os direitos econômicos, sociais e culturais;
3- Seu fomento nos Estados capitalistas a partir do New Deal, Estados Sociais e Welfare State;
4- Sua depreciação e retrocesso com a globalização e o neoliberalismo.

As exigências da condicionalidade material para muitos Estados supõe a compensação econômica das desigualdades e a criação de iguais possibilidades para os menos favorecidos. E não somente no âmbito dos direitos sociais, econômicos e culturais, que requerem maior atuação do Estatal, porque para assegurar o exercício a todos de muitos direitos civis e políticos também se precisa de ações do Estado em favor das maiorias menos favorecidas.

A condicionalidade material e a responsabilidade do Estado com o asseguramento do gozo pleno por todos de seus direitos exigem uma necessária conquista de igualdade social. A igualdade social, não confundível com igualdade jurídica ou formal, supõe iguais possibilidades para alcançar o gozo de todos os direitos; isso unicamente pode assegurá-lo o Estado, com uma intervenção responsável em assuntos sociais. Esta tarefa, que hoje é meta a se alcançar para muitos Estados, é a sustentação principal para poder erguer a nível social as bandeiras paradigmáticas dos Direitos Humanos. E não basta reconhecer um amplo rol de direitos e liberdades se não estão asseguradas as condições sociais (materiais e legislativas) que propiciem a realização, gozo e exercício dos mesmos; como tampouco é suficiente institucionalizar um ferrenho sistema de garantias para proteger àqueles, sem que tenha sido criadas as exigências para sua viabilidade social.

Uma sociedade a qual o Estado não possa assegurar justiça distributiva, emprego para todos, subsídios para os desempregados e desemparados, seguridade social, férias remuneradas, educação pública e saúde para todos e uma consequente e progressiva legislação de desenvolvimento dos direitos (com o objetivo de preservar o conteúdo essencial dos mesmos) não haverá alcançado altos níveis de existência real dos direitos humanos e terá que continuar trabalhando para tal.


2.3. – A institucionalização de um firme e múltiplo sistema de garantias para assegurar a proteção e a tutela dos direitos e liberdades individuais e coletivos.

Ainda que a condicionalidade material seja a panacéia econômica para poder falar da realização, gozo e exercício dos Direitos Humanos, isso não implica no respeito e na proteção dos mesmos. Por essa razão, é uma das exigências inerentes à cultura nacional dos direitos humanos a institucionalização de um ferrenho e múltiplo sistema de garantias, que compreenda as vias jurisdicionais especiais e ordinárias, ademais das não jurisdicionais.

O Estado há de dirigir sua atividade a criar, primeiramente, e consolidar logo após, mecanismos que sirvam de contrapeso, limite e freio ao atuar desmedido e arbitrário de indivíduos, funcionários e instituições, com o fim de assegurar a proteção aos indivíduos e coletivos no pleno gozo e exercício de seus direitos e liberdades. Mas sobretudo há de se cuidar que as diferentes vias instituídas funcionem com eficácia e caráter sistêmico.

O tema da proteção aos Direitos Humanos segue sendo atualmente de relevância singular: “[…] o problema grave de nosso tempo, com relação aos direitos do homem, não era mais de fundamentá-los, e sim o de protegê-los” (Bobbio, 1992 – 25).

Enquanto ocorrerem violações aos Direitos Humanos, tudo ainda não está resolvido. As Declarações não asseguram por si mesmas a proteção aos direitos do homem. Por isso é tão necessária a institucionalização de um sistema de garantias para restituir aos titulares seus legítimos e inalienáveis direitos: “[…] Ocorre, entretanto, que mesmo os dois pactos já firmados, um sobre direitos econômicos e sociais e outro sobre os direitos individuais tradicionais clássicos, não desembocaram em um sistema eficaz (per se) de proteção da vítima [...]” (Celso Ribeiro, 1995 – 148) (o grifo é nosso).

É certo também que não em todos os países que se há logrado os avanços necessários, nem foram cumpridas todas as exigências; inclusive, alguns tiveram períodos obscuros em sua história nacional, onde tornou-se evidente a violação, às vezes flagrante e massiva, dos Direitos Humanos. As ditaduras militares, o facismo, os regimes autoritários e totalitários, os regimes coloniais, o apartheid e o racismo, foram responsáveis por burlar todos os direitos e liberdades de povos inteiros, grupos nacionais e raciais, minorias e indivíduos.

Tradicionalmente em regimes não democráticos, os mecanismos de proteção e tutela aos direitos humanos não são estabelecidos ou não funcionam eficazmente, graças à impunidade em que ficam determinadas instituições e indivíduos, logo após ilegitimamente lesionar ou limitar direitos e liberdades com suas decisões e atuações.

Sem embargo, e apesar das tristemente célebres experiências, o mundo experimentou no último quarto do século XX grandes mudanças de concepções, posições e políticas em torno ao tema dos Direitos Humanos.

Conclusões

O assunto “Direitos Humanos” ultrapassou os estreitos limites nacionais para converter-se em uma prioridade internacional.

Claro que a possibilidade de dar rango internacional aos Direitos Humanos ou poder falar de uma cultura internacional deles somente é possível se cada Estado, ao menos a maioria, previamente tenha encaminhado seus esforços para a criação de uma cultura nacional de Direitos Humanos.

As reformas constitucionais em matéria de Direitos Humanos, a criação de aparatos estatais para a prestar atenção ao tema e a generalização a níveis nacionais de instituições garantistas como revisão judicial, amparo e ombudsman são também evidências do progresso que se experimenta. O fundamento é claro: fomentar uma política nacional em favor do reconhecimento, da realização e da proteção dos Direitos Humanos.


Notas

[1] Artigo publicado primeiramente como capítulo do livro "Os direitos humanos e o direito internacional", de Carlos Eduardo de Abreu Boucalt e Nadia de Araújo (Orgs.). Esta presente versão foi traduzida diretamente do Espanhol ao Português por Angelo dos Santos Mariño e ampliada por Angel Rafael Mariño Castellanos.
[2] MARIÑO-CASTELLANOS, Angel Rafael; TERRURÓ, Suzana Maria da Glória. La triple dimensión de los derechos humanos. In: BOUCALT, Carlos Eduardo de Abreu; ARAÚJO, Nadia de. (Org.). Os direitos humanos e o direito internacional. Rio de Janeiro: Renovar, 1999. P. 167- 192.



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