SENTENÇA INCRÍVEL


Triste e desolada. Assim tornou-se a partir do momento que sua chegada ao conhecimento público produziu grande alvoroço entre os presentes. Uma enunciação que produziu um mar de emotividades opostas e em favor de maneira irreconciliável: "Silêncio. Silêncio. Acusados fiquem de pé. Sendo considerados culpados pelo Júri dos dois crimes que lhe são imputados, o Tribunal os condena a 35 anos de privação de liberdade em regime fechado. Sessão encerrada."
A comoção causada, um verdadeiro reboliço, gritos por aqui, palmas de celebração por ali. "Justiça! Foi feita a justiça". " Incrível, sem provas, decisão contaminada com preconceitos. Injustiça. Injustiça". Nada podia fazer, mas era a causa de tudo. Na verdade, não ela, mas sim seu conteúdo, o dispositivo particular e concreto que ao concretizar norma geral e abstrata incorporou ao sistema jurídico a obrigação de reclusão em estabelecimento penitenciário (criado e institucionalizado para executar penas), em favor da eficácia das razões normativas legais que perseguem e salvaguardam bens juridicamente protegidos. Ela não podia mudar nada em favor ou contra do que ela mesma dispusesse.
A outros corresponderia examinar, seguindo critérios normativos e procedimentais, sua validade, força e consequente execução. À margem de emoções que pudessem ter estado presente e influenciado seu teor no momento da enunciação do seu conteúdo, começava a vigorar e sua edição imediata partia da presunção de validade. Por fim, seu emissor, Juiz Federal na Comarca de São José do Rio Preto, era autoridade normativa de competência reconhecida para examinar casos como esse: sub judice e análogos.
O problema para ela era a perturbação que lhe ocasionava saber que o resultado de uma trama cujas matrizes jurídico-normativas estiveram motivadas, rodeadas e em definitivo influenciadas por pressupostos morais que ela sabia que estavam presentes no seu corpo mesmo que não aparecessem de maneira explícita. Tanto entre os jurados, como no caso do próprio Juiz, houve e ela foi testemunha fiel das interpretações e presunções preconceituosas e racistas em torno aos fatos acontecidos ou apresentados como se fossem acontecidos.
A questão que a inquietava certamente era o juízo de valor sobre se ela seria justa ou não. Perante essa questão parou a refletir: com base a quais critérios avaliar como justa e injusta a decisão, tendo-se em conta o relativismo inerente à solução dessa questão? Como evitar o subjetivismo, claro, em caso de ser realmente possível?
Concluiu que o melhor seria procurar a definição mais objetiva possível e com algum nível de aceitação.
Lembrou que alguma vez escutara que justiça era, em sentido axiológico-moral, um ideal que fundamenta e estrutura toda experiência jurídica, do qual se deriva a CONDICIONALIDADE NORMATIVA PARA PROPICIAR A REALIZAÇÃO SOCIAL PLENA DO HOMEM ENQUANTO BEM PRINCIPAL DAS NORMAS DE DIREITO, e em cujo benefício e proteção organizam-se as instituições públicas, as relações sociais e interpessoais e a própria ordem jurídica. Portanto, enquanto ideal seria um valor em torno aos comportamentos, processos e atitudes humanas em face de alguma coisa. Uma ideia representativa do que se considera justo.
Preocupava-se por fim, com justiça no caso concreto. Em definitivo, a única e real forma de realização justa do Direito, porque em certa medida (e não com pouca razão) o outro era realmente uma retórica ora doutrinária ora normativo-legal sobre a justiça. A beleza literária do seu texto como o eloquente discurso argumentativo do Juiz, verdadeiro autor, não conseguiram ocultar a falácia que por ela decretava culpados dois inocentes. Chegava a ter remorso de saber-se utilizada para produzir o mal, justamente ela que por natureza estava destinada a ser veículo discursivo da justiça. Um paradoxo.
“E o juiz? ” Perguntou-se, talvez em procura de companhia nas suas reflexões. Ele não sente culpa? Pode simplesmente ir a sua casa a descansar ou talvez brincar com seus dois filhos pequenos sem sentir remorso e vergonha de ter participado em um desvio criminoso dos fundamentos axiológicos-morais do Direito, que como autoridade normativa representa e do qual deriva sua legitimidade? Ela estava inconformada entre as dúvidas e as decepções. Pouco podia fazer. Tentaria, porém, uma ação final que se não influenciasse no seu conteúdo, pelo menos daria a ela (ao menos nisso acreditava) paz moral: trataria esse assunto diretamente com o juiz, fazendo-o saber suas reflexões ético-morais, afinal, seria uma maneira de sair da Caverna e procurar a luz do saber.
– Doutor, longa jornada, caso complexo, todo mundo de olho, desde a mídia até as elites dinheiradas. Inclusive dizem que em Brasília o caso tem sido bem comentado via redes sociais dos famosos.
– Pois é.
A resposta curta e simples do juiz foi interpretada por ela como claro sinal de desinteresse no assunto. Quase no desconcerto ela perguntou-se: “Como conseguiu escalar a montanha sem olhar para atrás a saber o estado dos degraus? É muita indiferença emotivo-social. Chega a ser frívolo!”
– Dr., haverá recurso impugnando meu conteúdo? - Atacou novamente para dar espaço à conversa.
– Sim. Justiça não implica que o resultado do processo seja favorável, até porque interesses contrapostos são encontrados. Em regra geral, é impossível atender todos os interesses apresentados num processo, uns celebram a decisão como positiva "fazendo justiça”, outros levantam críticas e reclamam de não ter “recebido justiça". Por outro lado, devido processo legal é cumprir os procedimentos, os dispositivos legais processuais e até mesmo o direito material, muito especialmente preservando a imparcialidade, justificando legal e razoavelmente a decisão. Não deve ser entendido como princípio no sentido de atender os anseios e expectativas das vítimas, dos queixosos nem a pretensão do costum legis. A justiça é garantida se prevalece o Direito positivo que é seu portador e melhor expressão. Satisfeita?
– É Dr...como que a aplicação do Direito resulta em um processo complexo! Não quero manisfestar ânimo de discordar do Sr., muito menos de enfrentá-lo, até porque não me é possível em face a sua legitimidade e autoridade, e porque em definitivo sou apenas sua "cria", fruto do cumprimento das leis e enunciados que a integram.  Porém, acredito que se deve ter em conta os pilares axiológicos-morais do sistema normativo dos quais as leis e enunciados formam parte, um exemplo disso seria a igualdade, que segundo ensinamentos vem a exigir trato igual a todos no contexto de relações concretas sem discriminação de qualquer tipo, entendamos raça, cor, origem nacional, condição econômicas e outras.
– Espere. O que está querendo dizer?! Seu discurso parece uma defesa àqueles dois condenados nas suas páginas. Está me acusando de alguma coisa?
– Não, Dr. Ao menos não diretamente. Apenas destaco que nesse processo cuja decisão anuncio e por ter sido presente apreciei que em nem tudo o imputado foi materialmente comprovado, senão que em muito a condição social dos acusados e a cor da sua pele foram incidentes. E isto parece claro se valorizarmos o fato de não aparecer no corpo da jovem vitimada nenhuma prova suficiente que os culparia direta e claramente, bastando a declaração da testemunha que afirmou ter visto dois jovens dessa mesma "cor", caminhando na direção do escuro com a vítima. Então, o Júri inferiu que os dois acusados de cor negra seriam os responsáveis do terrível crime, que ademais moravam na favela e tinham "pedigree" criminoso. O preconceito esteve a flor de pele durante todo o Júri. Eu fui a consequência logicamente inevitável.  Ainda bem que existe a dupla instância (mesmo que não aparece na Constituição expressamente entre os direitos fundamentais do Artigo 5º).
– O que você quer dizer? Isso é uma acusação a mim que dirigia todo o processo. Você perdeu o juízo ...
– Não, Excelência. Somente deixo registrado ante o Sr. que esse discurso justificativo que divulgo nas minhas páginas é falacioso.
– Não vou continuar esse diálogo com você. Já tive que suportar demais. Preciso recolher meus filhos no colégio e os levar ao esporte. Boa noite.
– Boa noite. Justiça é um pilar muito caro para confiar a quaisquer mãos.
Perturbada, decepcionada e com sentimento de culpa, a sentença tirou sobre si a capa superior verde e encerrou uma conturbada jornada, desejando que outras dessa nunca mais se repetissem.

Comentários

Postagens mais visitadas