A INTERSECÇÃO ENTRE O DIREITO E A MORAL

As leis, assim como as estrelas em noites claras, iluminam a consciência moral dos cidadãos de bem. Aos comandos das leis os cidadãos ajustam suas vontades e decisões principais, e as compreendem como limites de atuação nos mais diversos contextos sociais. Mesmo que em certas isoladas ocasiões tivessem preferido regulações distintas, não se insurgem contra elas, optando por ativar os mecanismos que estão e foram estabelecidos ora por outras leis ora por dispositivos normativos entendidos como superiores àquelas, como o caso da Constituição, da qual deriva sua validade.

Nessa compreensão moral de que as leis devem ser obedecidas e espontaneamente cumpridas  se simboliza a máxima costumeira de que elas são legítimas por expressarem a vontade geral, então devem ser apreciadas como justificadas, e por essa razão, respeitadas. Ademais, são o resultado dos poderes legitimamente constituídos que objetivam com suas decisões (e o exercício de suas competências legais e legitimamente – na perspetiva moral – conferidas) o bem comum, a utilidade pública, a ética republicana e a felicidade e bem-estar de todos.

E é que somente pensando no moralmente válido é que resulta possível analisar/calcular os acertos da Lei, e em reciprocidade diretamente proporcional somente nos marcos autorizativos daquela que se pode identificar o Bem moral (o moralmente válido para a mesma comunidade que aceita a tal Lei como legítima).

Assim, a Lei possui (deveria possuir num contexto de sociedades democráticas cujo pilar seria o Estado de Direito) uma sustentabilidade moral, não sendo então, suficiente na perspectiva de sua legitimidade moral a satisfação de formalidades procedimentais e mesmo quantitativas, porque se exige que seu conteúdo (comandos, prescrições) estejam orientados (de novo) ao bem comum, à utilidade pública, à ética republicana e à felicidade e bem-estar de todos.

Talvez, por isso, a melhor compreensão da Lei seja a partir do reconhecimento de sua implicação com a moral. O que seria da lei sem uma linhagem moral suficiente para produzir sua aceitação? O nada moral. Um bando de prescrições e comandos (no sentido autocrático e espúrio) que impostos por aquela com poder suficiente (indiferente à noção de legitimidade) para fazê-la valer pela força e métodos repressivos (o que não se confunde com coercitivos) consegue que prevaleçam e se mantenham no tempo, espaço e sobre as pessoas. Seria, pois, uma lamentável agressão à moral boa (à moral justa), isto é,  aquela democrática que incorpora e tolera e é não-excludente, que na sua configuração societária justamente orientar-se-ia ao bem comum, à utilidade pública, à ética republicana e à felicidade e bem-estar de todos. Oposta e diferentemente desenhada daquela que se orienta ao individualismo desarrazoado por egoismo, narcisismo, ódio, intolerância, ideologias que enaltecem raças, gêneros, violências e incivilidades contra a sociabilidade. Aqui neste artigo se defende a moral que deve prevalecer nas democracias. A outra é a que sustenta autoritarismos e ditaduras, mesmo que apareçam envolvidas em capas legais.

A Lei e a moral estão, como sempre estiveram e permanecerão, interconectadas como fenômenos (sistemas) normativos, isso já sabemos. Ademais, na própria configuração conceitual de ambas enquanto frutos de uma certa razão prática observamos também conexão.  Elas acabam interconectando-se numa razão prática democrática–civilizatória que pretende ser suprema em face a formas de ordens e regulações comportamentais fundadas em outra racionalidade axiológica normativa humana (RANH) oposta e incompatível.

Ambas se intersectam num ponto (espaço) implícito na ideia de sociabilidade, porque ambas desde seus conjuntos normativos inerentes retiram suas motivações reguladoras, os fundamentos humanos e a justificação social. Nesse ponto ambas Lei e Moral intersectam-se porque as une o mesmo propósito orientador/diretivo que seria propiciar a convivência social entre seres distintos cuja necessidade humana de sobrevivência os obriga a compartilhar espaços e as próprias vidas. Essa necessidade humana de convívio, que encontra seu fundamento racional no pacto social, implica a existência de ordem e ele, a sua vez, de  prescrições, comandos e normas comportamentais.

Pode ser que por essas razões, muitas, tantas e bastantes ações e omissões humanas apareçam em ambas como sistemas normativos e não por acaso em múltiplas ocasiões hipoteticamente desenhadas coincide o ilegal com o imoral. Acaba-se por inferir a conclusão de que seria imoral aquilo que se regulado legalmente seria ação e omissão punida, ilegal e contrária à Lei. E em reciprocidade diretamente proporcional tudo o que é ilegal tem intrinsecamente uma imoralidade.

Certo que haveria o problema da Lei ser uma e única, enquanto a Moral se diversifica em diferentes compressões sobre o Bem e o Mal, relacionado com fatores como classes sociais, ideologias, religião ou simplesmente grupos sociais de convivência e até grupo familiar.  Porém, a Lei (o Direito) como sistema social predominante e que pretende ser supremo faz prevalecer o sistema moral (a Moral) que a RANH dominante aceita, que geralmente é compartilhada em democracias e sistemas políticos que lhe são próprios pelas maiorias.
O relativismo moral se vê vencido (mas não extinguido) quando prevalece entre outros o sistema moral recepcionado pela Lei,  Justo seria aquele cujos comandos (em maioria) não estão em incompatibilidade com a lei e que com ela criam uma relação de complementariedade.

Comandos morais daqueles sistemas  "preferidos” (referências), tal como dos demais, resultam recepcionados, tolerados e até protegidos em processos de judiciarização, na medida que não sejam, nem estejam contra os fundamentos que orientam e nutrem a lei, pois a incompatibilidade leva à produção de prescrições legais que visam a extinguir a validade dos comandos morais rejeitados.

Os costumes, hábitos, repetições comportamentais humanas e sociais válidas dependem sim de um consentimento ora expresso ora tácito da Lei, e claramente seriam declaradas proibidas e ilegais por vontade e determinação da Lei. Certo que sendo um conjunto normativo autônomo e diferente da Lei (Direito), a Moral não compete com ela, que possui níveis de institucionalização, estrutura e organização interna sistêmica e aparato de produção, aplicação e realização suficiente para a fazer prevalecer.

Todavia, a Moral consegue manter uma significação de referência para a Lei e sobre ela exerce ou pode exercer influências progressistas, especialmente se a Lei vier a não ser sensível nem estar adequadas às variações morais do progresso humano, que podem derivar de experiências de convivência social ou mesmo dos pressupostos fundacionais (RANH) que compartilha com a Lei ou cuja influência não escapa. A natureza estática da Moral (que resulta contrária à dinâmica jurídica) faz com que mudanças e alterações dos seus comandos sejam lentas, mas sua interconexão com a Lei faz com que alguns processos de transformação sejam agilizados.

Na medida em que a Moral orienta os atos humanos ao Bem no contexto da sociabilidade e o Direito resulta como orientação endógena à convivência pacífica e harmônica em sociedade, ambas coincidem como conjuntos normativos numa finalidade reguladora que produz um ponto ou espaço de intersecção que as mantém ligadas, o que ademais de explicar e justificar uma relação (teórica) entre elas descobre sua derivação da mesma RANH.

A pretensão de explicação do Direito sem implicância moral ou sem tratar a sua conexão moral parece deixar de lado não só sua origem e derivação axiológica da mesmo RANH, como a necessária complementariedade normativa (na verdade, complementariedade diretiva). Tudo não pode ser juridicamente regulado (ou melhor, planejado), sob pena de fechar demais as relações sociais e a própria liberdade (ao menos que seja criado um Direito de uma norma somente: "tudo é permitido"), nem é possível deixar toda condução comportamental à Moral, pois não estaria garantida eficácia mínima derivada da imperatividade/coercibilidade/imperatividade próprias da ordem jurídica.




CONTINUA.

Comentários

  1. A VERDADE É UMA SÓ, O DIREITO É UM CONJUNTO DE REGRAS ,NÃO É COMO AS VEZES DIZEM POR AI, QUE O DIREITO É UMA REGRA ,É UM CONJUNTO DE REGRAS QUE POSSUI O TIPO DE UNIDADE QUE ENTENDEMOS POR SISTEMA.

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    1. Noções sobre o Direito e o Estado28 de outubro de 2018 às 10:19

      Concordo, prezado. Um sistema cuja característica deve ser enfatizada é sua fundamentação axiológico-moral.

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  2. Rodrigo Félix da Silva6 de novembro de 2018 às 01:58

    Texto muito bom...

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