O ADVOGADO E O PRESO
Era mais uma visita ao Presídio Federal, quarta vez
na semana. Tentaria esgotar todos seus esforços para reunir elementos que
permitissem elaborar uma defesa em favor do acusado, seu cliente, e não
unicamente por dever profissional e estar recebendo honorários, fama ou mídia
para fazê-lo, senão porque considerava que poderia enfrentar e vencer a
injustiça notória a ponto de acontecer. Não importava a opinião divulgada nas
mídias e redes sociais, nem os ressaltados anseios do povo por "cadeia
para os ladrões e corruptos", que ademais não tinham uma mediação
confiável com a alta cota de influências midiáticas carregadas de intenções
políticas e interesses eleitorais. Ele queria fazer seu papel de defensor com
honestidade e dedicação: "Sem advogado não é possível lograr a
justiça". Ademais, a convicção da inocência do acusado cobrava notoriedade
cada dia, com as novas "descobertas fáticas" apresentadas sempre à
mídia ao uníssono da inserção processual.
Seria tarefa difícil, mas um imperativo moral
aparecia como incentivo a não desistir de fazê-lo bem e melhor, já que em
definitivo seu compromisso era com o Estado de Direito, os direitos
fundamentais e a Constituição que os consagrara. De alguma maneira ele também
tinha a função de custum legis mesmo
que fosse no contexto de um caso sub
judice. Atitude moralmente correta
que se esperava dele como jurista, já que o Direito é a consagração normativa
de atitudes, comportamentos e ações idealizadas moralmente segundo o contexto
histórico de uma comunidade política. Claro estava para ele o provérbio
"Everybody under the Law", sentença fundacional de todo Estado
democrático.
– Bom dia, sr José. OAB 154338. Venho visitar o detento José Augusto.
– É Dr.... seu interesse nesse caso é grande. Terceira vez que o vejo
esta semana. Na minha experiência de carcereiro poderia mencionar o Sr. como um
modelo de comunicação entre advogado e preso. Vou agilizar.
Consciente que não seria tão rápido, o advogado
abriu a pasta de couro negro onde carregava os documentos relativos ao processo
que o ocupava essa manhã e que havia atraído toda sua atenção nas últimas duas
semanas desde que a esposa do cliente foi a visitar o escritório e assinar o
contrato de representação e defesa daquele que mais uma vez visitava na mesma
semana. Pegou de dentro a Constituição Federal edição de luxo que ganhara do
pai no dia do seu aniversário de 35 anos. Olhando fixo ao livro, lembrou de uma
fala que um antigo professor de constitucional repetia inúmeras vezes em suas
aulas: "Reinas de maneira absoluta entre nós, mesmo que alguns pretendam
desconhecer tua magnanimidade normativa, eles serão dominados e reduzidos à obediência
pela tua força histórico-fundacional". Pensou: "Se fossemos educados
sobre a relevância e o imperativo de subordinação aos dispositivos desta Lei
Suprema teríamos a metade dos problemas institucionais, políticos e sociais.
Algo está faltando quase 30 anos depois da sua promulgação"
– Dr., seu cliente o espera na sala de entrevistas. Acompanhe-me, por
favor.
– Claro. Fiat justitia....
Na sala de entrevista do presídio federal aguardava
o processado. A sala era de cor gris que o tempo e a limpeza distante tinham
escurecido criando um ambiente tenebroso. A decoração contava com uma mesa de
mármore também de cor gris, embora mais clara que as quatro paredes, talvez
consequência do reflexo da luz exageradamente clara. Ambiente que se completava
com uma cadeira de ferro, não tão velha como a mesa, em claro sinal que era
mais nova e que não correspondia originalmente à mesa. Contudo, o destaque na
sala de entrevista em questão era o chão, fruto de uma limpeza que desentoava
com aquele lugar, diga-se quase pulcra ou continuamente faxinada.
O detento contrastava com aquele lugar. Negro na
classificação racial, sua maneira era serena, cautelosa e calma, dando a
impressão de que era um visitante alheio e não um detento com assiduidade
naquele lugar. Um observador externo ressaltaria a paciência e imobilidade com
que aguardava sentado em correção quase de penitência na cadeira de ferro. Sua
vista permanecia inalterável em direção ao centro da mesa de mármore que
desenhava um ponto de união entre linhas brancas e pretas formando um
redemoinho.
– Bom dia Sr. José Augusto. Tudo bem?
– Bom dia Dr. Fernando. O bem e o mal são conceitos que refletem juízos
de valor e eles estão associados à posição do hermeneuta. Mal, estou mal.
– O melhor é que estando nós dois desde a mesma posição podemos
construir um consenso axiológico. Trago uma notícia boa e uma quase má, pois
não se completou toda a maldade. Começo pelas boas novas.
– Dr., o teorema matemático cumpre-se: "A ordem dos fatores não
altera o produto". Adiante.
– O recurso de Habeas Corpus prosperou e o Sr. apenas terá de aguardar o
alvará de soltura. Permanecerá em prisão domiciliar até julgamento do mérito,
eis a notícia boa. A outra é que terá que utilizar tornozeleira eletrônica. O
Juiz pretende que a liberdade seja concretizada hoje, assim que concluirmos
nosso tempo de entrevista permanecerei no aguardo para irmos juntos.
– Uma vitória Dr. Fernando, porém pífia. Lógico, é um claro sinal que o
mal não é onipotente. Levar tornozeleira é, no meu caso, aditamento de 4
séculos que me obrigará ad eternum a
demonstrar minha inocência. A maior felicidade, contudo, deriva da prevalência
da Constituição e dos direitos fundamentais que a fazem insuperavelmente
humana, bem apesar do querer de seus desafeitos. Alegro-me não por mim,
somente, senão porque aparece a esperança que embora com 30 anos de idade, ela
está forte, imponente e vigorosa.
– Tempo esgotado. - Grita a voz do funcionário de plantão.
– Espero-lhe, sr. José.
– Agradeço, Dr. Obrigado.
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