Diálogo entre o Direito, a Lei e o Crime (PARTE 3)

– Lei, respeitável lei. Tenho testemunhado o diálogo, muito polêmico aliás, entre você e o crime, e não posso dar o luxo de me omitir. Você tem sido desde sempre a mais relevante e majoritária de todos os atos e disposições que me formaram, inclusive, poderia dizer que em muito tem refletido minha orientação reguladora e através de você meus alinhamentos fundamentais tem se viabilizados, concretizados e materializados. Negar isso seria uma injustiça (de justiça falaremos mais adiante) e um desconhecimento inaceitável vindo de mim a tudo o que você representa. Claro que a força e mesmo imperatividade que desfruta está derivada de mim e associada à coatividade que me é inerente. Você nada significa sem mim, mas eu sem você seria um sistema de enunciados tão abstratos como inviáveis socialmente.

Entretanto, você não sou eu, e nem eu posso me reduzir a você. Existe uma relação entre nós similar à que existe entre o todo e a parte. Não me é possível ficar em silêncio quando você insinua ao crime que somos a mesma coisa. É um reducionismo legalista do passado jurídico em que a experiência normativa nos identificou sob o manto da soberania e a pretensa e incontestável racionalidade do legislador criador. Isso ademais de um erro seria desarrazoado, em primeiro lugar, porque estaria me reduzindo à vontade dos grupos no poder que lhe criam e com isso, meu transcendentalismo viraria fruto de certas condições histórico-concretas, ou menos, os interesses (por vezes espúrios) dos que ditam as regras. Nossas existências conjuntas e simultâneas, Direito e Lei, Lei e Direito, através da história das comunidades politicamente organizadas e a experiência jurídica, pode ter influenciado a essa identificação, porém, eu represento bem mais, porque sou o sistema, o todo, enquanto você é uma das minhas partes. Mas a maior diferença não é essa, senão que sou um sistema normativo cujos fundamentos existenciais não são nem podem ser reduzidos às vontades de grupos de poder segundo um certo contexto histórico-social. Já antes lhe anunciei sobre minha transcendentalidade. Respondo necessariamente a pilares axiológico-morais como vida, igualdade, justiça, liberdade, solidariedade e propriedade, num contexto de convivência pacífica e harmônica. O ideal de que me utilizo como guia expressa o paradigma de convivência, subsistência e reprodução no tempo e em certo espaço de toda a comunidade humana que em mim identificam-se, embora seja por meio de enunciados imperativos que de mim são parte. Organizo a vida em sociedade, sou portador do permitido, proibido e obrigatório. Defino o legal e o ilegal, institucionalizo autoridades, Poderes. Determino quem me representa, cria, aplica, introduz mudanças no meu conteúdo, estabeleço quase tudo de maneira antecipada, sem excessos privativos desnecessários e perturbadores. Ainda consigo, o que ressalta minha autoridade e valor, passar estabilidade, previsibilidade, certeza e segurança.

Você não seria nada sem mim. Existes e sobrevives em torno a mim e minhas diretrizes. Não és eu e nem pode ser confundida comigo porque pode afastar-se de minhas diretrizes e inclusive projetar-se contra mim. Ainda bem que nessa minha necessária desconfiança e previsão tenho os meus "bispos" para reduzirem você à obediência e inclusive a aniquilá-la se necessário for.

– Por favor, seria coerente e consequente com essa toda sua magnanimidade declarar, se me deixa expressar, que não creio que seja para defender-me pois não estou sendo acusada, a caracterização que fez comigo lembra a antiga Ilíada de Homero e nela a queimada de Tróia. Data venia, preciso urgentemente dizer, pois não posso aceitar tranquilamente que nessa sua exposição tenha-me satanizado. Inclusive ir-me-ei utilizar de alguns dos seus próprios argumentos.

O principal deles é aquele que destaca que somos diferentes. Bom, diferentes não significa necessariamente dois elementos sem conexão ou relação. A diferença seria entre o todo e a parte, pois nossa essência reguladora é a mesma, meus produtores foram autorizados e institucionalizados pela sua Excelência. Estou vinculada, ou melhor dizendo, atada aos seus pressupostos axiológico-morais. Por fim, sou criação sua...

– Detenha-se! Sinto interromper, ao invés de pedir um aparte ou esperar minha vez, mas me parece inaceitável esse seu contra-argumento de que é uma criação minha. Inaceitável teórica e praticamente. Uma razão simples de contrarréplica seria lembra-te que institucionalizo autoridades normativas cuja função, entre outras, é de produzir leis e normas em sentido geral, e ademais enfatizo: elas possuem autonomia para seu desempenho, não sendo, pois, imputável a mim os desvios em que elas tenham incorridos e seu corpo normativo conter.

– Pode que seja! Assim é fácil! Mas inclusive nessa hipótese também deveria você criar mecanismos de correção para impedir patologias normativas em mim, dessa forma não seria a única culpada pelos "desvios" que refere.

– E os tenho. Um dos meus princípios sistêmicos fundamentais é o imperativo de correção, justo para identificar e expurgar de mim patologias.

– Entendi. Claro que entendi. Sem o notar sua Excelência está expondo em público, neste diálogo, uma insuficiência sua. Kkkk. Valeu já o debate. Quer dizer que carecendo de mecanismos de verificação e controle preventivos em face à produção de dispositivos normativos como eu e normas em geral sua vulnerabilidade sistêmica é real. Que interessante!

– Parabéns! Você acaba de descobrir o mistério. Sua genialidade me faz lembrar a de Fiodor Dostoievski, revelada no final de Crime e Castigo. Aproveito a paródia para dizer que este ponto que você tocou será matéria para um outro e novo diálogo. Tchau.

– Passar bem.

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